Pausa || para o Luto.
Sendo o Luto um processo contínuo para a vida, o falecimento ou a perda de alguém amado traz consigo a dor psicológica, esta obedece a cinco fases que nem sempre vêm por ordem e podem se confundir com o número de dedos das mãos, por isso é essencial fazer Psicoterapia, para que os conhecimentos da Psicologia possam fazer o seu papel, no auxílio na libertação desse pesar e que a vida volte a ser vivida com o seu real sentido.
Na minha experiência profissional, estive em contacto com mais de uma centena de pessoas com Lutos por fazer, o sucesso é garantido muito pelo empenho das pessoas no envolvimento dos seus processos psicoterapêuticos. Hoje penso que será importante deixar um exercício de escrita de uma carta a um Pai, que funciona como catarse emocional.
Olá Pai, escrevo-te passado 25 anos sem a tua presença física. Esta vontade de escrever pela primeira vez cresceu-me no pensamento por me encontrar próximo da idade que partiste, não sei o que dizer, como se as palavras se dissipassem no papel, neste quarto de século sem ti só sei que nunca mais fui o mesmo.
Foi um estrondo avassalador, bem superior ao Mar naquele dia, mesmo assim determinados fomos apanhar aquela onda que nos enrolou aos dois, só passado algum tempo me veio o sorriso num misto de perigo, respeito, despertar e amor maior aos presentes da natureza.
Uma das tuas grandes preocupação era o teu amor à Mãe, outra força da natureza tão bela, é óbvio o porquê da tua e vossa tremenda paixão, ela está sempre com o seu sorriso maravilhoso que herdei e orgulhosamente o demonstro, sei que possivelmente foste tu que lhe encaminhas-te o enorme companheiro, também Artista, meu segundo Pai com enorme gratidão.
De ti tenho tudo para além das aprendizagens, a minha grande herança és tu em mim, é um orgulho ter partes das tuas feições nos gestos, no jeito, a tua sensibilidade no humor que demora a perceber por fazer pensar, e sobretudo o sentido do belo na visão de arte e estética.
Sabias bem do efeito das tuas obras de Arte, para a mente e o que desencadeia no cérebro de quem as observa. Ainda hoje cheiro tu a afiares os lápis de carvão com as tuas mãos, as mãos mais bonitas de homem que já conheci, afiavas com afinco sempre com uma navalhinha para fazeres os teus desenhos e projetos, ainda soa as tuas roladas e pinceladas na conjugação das cores das tintas aplicadas nos materiais reutilizados. Mostras-te que não basta ter talento, é essencial ter tenacidade e persistência na evolução diária, aplicavas o teu plano concreto e realista nos teu sonhos, sem esta visão, um sonho não passaria disso de apenas um sonho, e vão ser sempre poucas as paredes para expor tremendo dom, bem visível na obra que deixas-te.
Ainda pequenino ia ajudar-te nas tuas obras e ficava a observar a forma como executavas cada pormenor, lembro que uma simples lareira era mais que um símbolo de calor e conforto, era uma autêntica peça de arte que qualquer pessoa comentava e apreciava, ainda hoje tenho diálogos com pessoas agradadas da perfeição na realização dos teus feitos.
Eras exímio em mais de 7 artes, sou um privilegiado ter herdado tanto de ti até no traço da escrita. O bom gosto pela verdadeira Música 70/80 Rock e o Fado em vinil no teu prato portátil na tua altura fazias a festa em qualquer garagem para as pessoas dançarem. Lembro de perguntar, o que estás a pensar? Estava quase sempre a pensar em algo para dares asas à tua criatividade, até a resposta às explicações do porquê da escolha do meu nome, a minha reação foi logo uma gargalhada e passei a adorar nesse momento. Sim, já encontrei livros com personagens com meu nome, não sei se era o que te referias, percebi mais tarde que era mais uma estratégia para me incentivar a ler e assim aumentar o conhecimento e a biblioteca com os melhores.
Já agora, por estar ligado ao nome confesso-te que tive dificuldade em escolher a minha profissão, pela vasta sanguinidade de “dons” pessoais e familiares, e sabes, escolhi a melhor do mundo, identifico-me na plenitude, mais que a prevenção e a cura dos desequilíbrios da mente, dos afetos e emoções, permite-me conjugar todas as áreas e realizar os sonhos de pessoas que me consultam num querer crescente na sua própria evolução.
Uma das tuas especialidades são os ladrilhos por vezes reutilizados, eram transformados em painéis tipo (Gaudí). Soube mais tarde que foste Mestre de muita gente artista dos ladrilhos, notável é ver que um chão para ti era uma nobre tapeçaria, que autodidata que tu és também bem marcado em quadros.
Quadros como este intitulado “Em Defesa da Família”. Que bela mensagem a defender a família sem usar a violência, e sim a diplomacia, o diálogo e o respeito que sempre mostras-te no teu caráter, sabias bem que a autoridade parental é do tamanho do vínculo afetivo, tão delicado, sensível e tão forte neste espaço temporal.
Que forte foste aqui fisicamente e psicologicamente, sabias o futuro que te reservava e ias falando dele, sempre com humor inteligente sobre a luta do pêndulo paciente || impaciente, na passagem do tempo com o teu sábio e incrível sorriso amável.
Uma das coisas que mais me impressiona é a nossa última conversa, de certo não tinha a maturidade suficiente para a entender e atuar, só na altura certa, de tão complexa que era na simplicidade das tuas palavras, logo num dia que não era para te ver.
Ia trabalhar de tarde no café nas quartas e sextas livres de escola, avisei para não contarem comigo, nesse tempo, por iniciativa própria, disse ao Amigo Das Neves em jeito da habitual comédia , que queria ir à boleia para Castelo Branco, veio comigo e só lá lhe disse que eu ia estar contigo, não estavas à espera e a nossa conversa foi improvável e sem saber, tudo o que falamos, está e irá acontecer.
O último gesto foi o teu clássico piscar de olhos sedutor que nunca vi em mais ninguém, em conjunto com o gesto do filme do momento que não vimos juntos que só deu mais tarde na TV. Ao fundo do corredor da ala hospitalar, ainda voltei para trás, no querer te dar mais um beijo e confessar só mais um segredo somente para nós, a Sra. Enfermeira disse que tinha mesmo de sair.
Estaríamos no fim de semana, vinhas a casa. Nessa sexta de tarde, ainda festejas-te o dia da liberdade com os teus amados cravos, sempre ora vermelhos ora brancos, era o teu sinal de liberdade até ao dia da libertação. Já a aguardar-te, entretanto estava a servir bebidas e do nada escorregam pelas minhas mãos dois copos em simultâneo, estranhei por ser raro quebrar algo, só me lembrei daquele pote precioso que parti aos cinco anos por descer o corrimão de pernas abertas, aí aprendi bem a lição. Soube nesse momento, que foram aqueles os últimos gestos e a última palavra que partilhámos presencialmente.
Como a avó dizia, vamos falando e não é só com os botões.
Independente do que acredito, sinto-te e vejo-te.
E o traço da tua obra irá sempre continuar…
Sou um privilegiado ter-te como Pai.
Aquele nosso Beijo e Forte Abraço.
Celino Lopes Barata
26/04/2021